Esta coisa da insónia propositada de que falava o António... Não, ela não ficava acordada por ter uma doença grave ou essa coisa não tão grave mas doença que é a insónia. Não acredito que aquilo fosse essa insónia. Ela tinha medo de qualquer coisa que à noite podia acontecer se ela estivesse a dormir. A coisa de que ela devia ter mesmo medo e quase diria terror(disse isto?) era da ausência de coisas a acontecer enquanto dormia. Pensando bem, um medo cheio de consciência-um medo pode ser assim?- mas um medo. À noite, quando se está acordado, as coisas não acontecem diferente por que estamos acordados. Agora quase tive a coragem de dizer acordados com toda a certeza ligeira, mas retiro já e digo apenas acordado porque nunca se sabe se alguém vai ler isto um dia e ainda mais se ao ler acha mesmo que as coisas à noite quando se está acordado são diferentes. Eu podia discutir isso. Discuto. Mas preciso de alguém para fazê-lo, alguém que tenha a falta de originalidade e tempo suficiente para dispender numa coisa como esta. Porque numa altura em que os oitenta anos estão aí quase a tocarem à porta e a dizerem para descer no elevador, já ninguém (por mais vezes que tenha encarnado num sofista grego ou que goste de dizer aquelas coisas apenas porque dizer coisas e coisas bonitas os faz acreditar mais em si e no progresso, que é uma coisa que nem sempre evolui para o melhor) me convence assim. De qualquer maneira dizia eu que aos oitenta anos é preciso não ter vocação nenhuma na arte da retórica para me persuadir e alguém que escolhesse dialogar(ainda por cima a estas horas) acerca de se as coisas à noite, quando estou acordado, são diferentes, era decerto capaz de trazer um canudo todo em retórica. Ainda há uns canudos que se oferecem ao fim de uns anos de canudice, ou como é que essa coisa se chama, e que muito bem desenvolvem meninos nas artes dos sophoi. Mas isto tudo para dizer que à noite as coisas passam daquela maneira como quando se vai ao teatro e não se percebe nada do que se está vendo. Uns homens a espernear, umas mulheres a assistir ou a espernearem com eles e uma plateia a vibrar não sei nem nunca entendi se por entenderem tudo tão bem, fazendo juízos complicados ou guardando-os para fazerem figura à noite quando chegam a casa, na cama, ou se no café das seis e meia da tarde do dia seguinte. Ainda assim, sem cafés de seis e meia prometidos nem desejos de contar na cama os êxtases teatrais, escolho -não escolho, acontece-me- que fico sempre sem saber se o que assisto no palco em frente aos olhos é para ser decifrado, falado, pensado, ou se apenas quando vou a esses lugares me compete ver e calar, nem sequer pensar(posso?). Também me podem dizer que tenho apenas de sentir, mas aos oitenta anos tenho medo de chegar ao teatro, desejar sentir e não conseguir. O médico disse-me que essa coisa das sinapses e dos hemisférios que me andam a atacar. Não sei se é verdade, porque nunca tentei saber, mas o certo é que prefiro que não me dêem palpites inteligentes e eu assim posso continuar a ir ao teatro sem esta auto-promessa de apenas sentir e não pensar ou a outra de pensar como o homem tão inteligente e tão feio, porco, ao meu lado. Mas tem óculos e até um lenço(não, não correm lágrimas, assoa-se). Assim quando entro na sala fria do teatro não vou com nada, sou vazio, e então esqueço-me que já não consigo sentir porque oitenta anos não é como quando tinha setenta e então fico feliz e tenho a certeza que os homens a espernear e as mulheres a assistir ou a espernear com eles são como aqueles que vejo da minha janela e que em vez de palco pisam a rua. Aí estou em casa e em casa não tenho esses homens de lenço a assoar e posso olhar tudo. Não tenho esses lenços nem esses óculos mas em casa tenho a mesa, as duas laranjas e a cama em que me deito e já não penso, só durmo e espero pela sessão de amanhã. Porque tenho esta teimosia absurda de que amanhã vai valer a pena entrar na sala, sentar-me e as coisas serem diferentes. Mas isso só acontece quando ganho a coragem de me enfiar nos lençóis e fingir que morro de sono. Só eu sei que de sono não morro nem morrerei. Aos oitenta anos a gente não morre de sono.
domingo, 16 de março de 2008
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6 comentários:
Boa prosa!Ainda estou a matutar na "coisa" por isso não arrisco um comentário...
Passarola Voadora
E depois vêm os noventa...
O tempo nos constrói o tempo nos destrói.
Os "Oitenta anos e o sono da insónia. Do que nao se morre antes dos "oitenta anos"?
Num dia desses, no "meu" restaurante vegetariano, ouvi uma voz portuguesa bem empolgada falando sobre carros e o transito brasileiro. pensei: "será que a patricia um dia volta?"
e ai, ela deu risada! tive que me virar e ver, pra ter certeza que nao era vc. mas seria legal se fosse! ;)
já sei que é Patrícia. eu, um Paulo bailarino, montando um solo de dança que deve se chamar "como se fosse oitenta". não que eu seja tão otimista, mais sonhador na verdade que otimista. desejo chegar aos oitenta dançando e resolvi adiar este acontecimento. navegando, descobri seu texto lindo. e chamo ele na verdade de fala. gostaria muito que ele pudesse fazer parte do meu espetáculo. se me autorizar, meu contato é pjalencar@gmail.com. um beijo na alma e no coração.
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